Este artigo aborda a possibilidade da implementação
das Parcerias Público-Privadas na gestão prisional brasileira. Por uma
série de fatores, o sistema penitenciário fracassou e não foi possível
alcançar os ditames dos direitos fundamentais do cidadão encarcerado.
Dentro dessa perspectiva, surge a possibilidade da iniciativa privada
participar do gerenciamento das unidades prisionais, na tentativa de
atenuar o grave problema da superlotação carcerária.
Introdução
É cediço que a prisão é um mal. Necessário, porém um mal.
Na perspectiva de melhora da situação prisional no país, é que se
vislumbra a possibilidade de Parcerias Público-Privadas para a melhor
concretização dos direitos fundamentais do cidadão encarcerado, pilar do
Estado de Direito.
O intuito deste ensaio é, sobretudo, verificar se a gestão
compartilhada será mais humana e mais producente do que a gestão pública
verificada nos dias de hoje, e se ela poderá atender de maneira mais
eficaz aos ditames dos direitos fundamentais, com a consequente acolhida
das garantias constitucionais inerentes à pessoa humana, máxime em
relação àquelas que estão a sofrer a mais aguda e penetrante das
intervenções estatais.
A tentação penal é a regra na atualidade. Quer se criminalizar condutas
que, à luz do melhor direito, jamais interessariam ao campo do direito
penal, esquecendo-se que a intervenção penal é supletiva, subsidiária em
relação aos demais ramos do direito.
Com isso, o sistema penitenciário que já se encontrava inchado e
obsoleto, com as cadeias públicas sendo verdadeiros dejetos de cidadãos
amontoados e aglutinados, encontra-se na necessidade de criação de mais e
mais vagas.
Juarez Cirino dos SANTOS, em lapidar monografia, informa que:
... a crise geral do capitalismo, ligada às necessidades de acumulação do capital e aos problemas de novas ofensivas contra a organização da classe trabalhadora, produziu uma ampliação do controle social, através de seu deslocamento de setores não produtivos – a prisão, área de circulação – para setores produtivos – o mercado de trabalho, área do tratamento comunitário. O movimento de deslocação da estratégia de controle da prisão (principal instituição acessória da fábrica) para a cidade (área de reprodução da força de trabalho saudável, disciplinada e educada), trouxe consigo um controle mais generalizado e mais intenso, com maior vigilância e maior rigor punitivo.[1]
E nesse prisma surge a possibilidade de parcerias com o sistema
privado, visando dar maior dignidade àquele que já se encontra ceifado
em sua liberdade.
1. Breve explanação sobre o histórico da gestão privada
O pouco caso feito pelas autoridades públicas com seus presos é
notório. O número de vagas é insuficiente, a gestão é pífia e o que é
pior, a falta de respeito pelos direitos humanos salta aos olhos.
Aliados à falta de higiene, de atenção médica, odontológica e psicológica, a situação prisional brasileira é caótica.
Mas a implementação de parcerias com a iniciativa privada nem sempre significa respeito aos direito do homem.
Talvez o exemplo mais clássico do descaso e das violações dos direitos
fundamentais seja Auburn, o sistema penitenciário auburniano, em 1816.
Da cidade de Auburn, no estado de Nova York, existiu um modelo de grau
de disciplina absolutamente rigoroso, onde os castigos físicos eram
aplicados imoderadamente.
Tal “sistema carcerário” estava calcado em dois critérios fundamentais:
o solitary confinement durante a noite e o common work durante o dia.[2]
Visando evitar os contatos entre os internos, o solitary confinament,
também chamado de silent system, determinava o retorno ao confinamento
durante a noite em completo silêncio.
Derivado do incremento do capitalismo, o sistema penitenciário
auburniano surgiu como forma de adequar a mão de obra penitenciária aos
intentos do sistema capitalista, submetendo o recluso ao seu regime
político-econômico, aproveitando-o como força produtiva.[3]
Os prisioneiros eram divididos em três categorias: a primeira era
composta pelos mais velhos e persistentes delinquentes, aos quais se
destinou o isolamento contínuo; na segunda, situavam-se os menos
incorrigíveis, que somente eram destinados às celas de isolamento três
dias na semana e tinham permissão para trabalhar; a terceira, era
integrada pelos que davam maiores esperanças de serem corrigidos. A
estes somente era imposto o isolamento noturno, permitindo-se trabalhar
juntos durante o dia, ou sendo destinadas celas individuais um dia na
semana.[4]
O fato de o encarcerado não poder se comunicar com ninguém, por óbvio, jamais poderia levar a sua recuperação.
De fato, o intuito nunca foi esse, mas sim a finalidade utilitária
consistente na exploração da mão-de-obra carcerária, muito mais barata
que o trabalho comum.
Como consequência, o método auburniano em nada contribuiu para a
ressocialização do apenado. Muito ao revés, seus resultados apresentados
foram desastrosos.
O que se buscou foi somente o lucro, pouco se importando com as consequências indeléveis na vida do cidadão recluso.
Tal método fracassou, uma vez que se afigurou improsperável do ponto de
vista do respeito aos direitos humanos. Entretanto, sempre será
necessário seu estudo para que não se possa, liminarmente, acolher a
gestão compartilhada no sistema prisional.
2. Algumas experiências brasileiras
A primeira tentativa nacional ocorreu na penitenciária industrial de Guarapuava, no interior do estado do Paraná.[5]
Muito embora não seja inserido no contexto de uma PPP, a gestão era
compartilhada entre o ente público e a iniciativa privada, sendo que os
custos da construção couberam exclusivamente ao setor público.
Parte da administração foi terceirizada, cabendo ao gestor privado a
prestação de atendimento com relação à alimentação, assistência médica,
psicológica e etc.
Contudo, a disciplina manteve-se prioritariamente a cargo do Estado,
uma vez que ao governo foi mantida a atribuição de nomear o diretor, o
vice-diretor e o diretor de disciplina do estabelecimento.
Com o razoável sucesso alcançado, a iniciativa de gestão compartilhada
prisional se estendeu a outros municípios paranaenses, obtendo bons
resultados.
Mas a primeira experiência nacional de Parceria Público-Privada ocorre
no Estado de Minas Gerais, precisamente em Ribeirão das Neves, região
metropolitana de Belo Horizonte.
O contrato para o início da concessão foi assinado em 2009, e as obras
já estão em fase final. Estão sendo criadas 3.000 (três) mil vagas pelo
governo, com previsão de funcionamento no final do ano de 2012.
Segundo o governo mineiro, está prevista verdadeira inovação no sistema
prisional nacional, com a utilização de tecnologia de ponta. Itens como
controle eletrônico de todas as funções da unidade prisional, incluindo
o comando de celas, portas, água, luz; comando de voz à distância e
escaneamento corporal (body scan) estarão presentes em todas as unidades
do complexo.
O empreendimento ficará a cargo do consórcio GPA, vencedor da
licitação. Segundo o coordenador da Unidade Setorial de Parcerias
Público-Privadas da Secretaria de Estado de Defesa de Minas Gerais,
Carlos Eduardo Resende:[6]
Os investimentos previstos para a obra são da ordem de R$ 160 (cento e
sessenta milhões) de reais, e o tempo de contrato é de 25 anos.
Durante o período, o parceiro privado ficará responsável pela gestão e
pela manutenção do complexo, bem como dos serviços assistenciais.
Mas o ineditismo da parceria encontra maior relevo justamente no fato
de o consórcio vencedor da licitação ser o responsável pela disciplina
interna dos detentos, calcanhar de Aquiles das penitenciárias
brasileiras, que poderão sofrer (ou não) duras críticas da opinião
pública e de entidades de direitos humanos.
O Poder Público, todavia, permanece responsável pela segurança externa e
pelo controle e monitoramento das atividades, assim como nas situações
de crise. Nesse caso, caberá ao estado imediata intervenção para debelar
situações de alta complexidade.
No que toca à remuneração ao parceiro privado, serão observados os
seguintes critérios: Número de rebeliões, nível educacional dos
internos, número de fugas, proporção de trabalho ofertado aos internos,
qualidade e quantidade dos serviços de saúde e a assistência jurídica
aos detentos.
Por óbvio, quão maior e melhor o serviço prestado, melhor remunerado será o parceiro privado.
O modelo de sistema prisional seguirá o modelo inglês, que utiliza o
conceito DBOT (Design-Build-Operate-Transfer), cabendo ao consórcio
vencedor da licitação a criação do projeto arquitetônico, a construção
da infraestrutura e a operacionalização de todo o complexo.
Em São Paulo, devido ao imenso número de detentos no estado, somado ao
insuficiente número de vagas, faz com que o governo do estado elabore a
primeira licitação para a realização de Parcerias Público-Privadas no
sistema prisional.
Para se ter uma ideia do que ocorre na situação carcerária paulista, só
nos primeiros quatro meses de 2012, a população carcerária recebeu
9.216 internos, contra 9.504 em todo o ano de 2011.
Embora haja algum esforço por parte do governo para o incremento nas
construções de presídios, o ritmo ainda está desacelerado. Com isso,
torna-se necessária e viável o gerenciamento compartilhado de unidades
prisionais entre o parceiro público e a iniciativa privada.
Pensando nisso, o governo do estado cogita a possibilidade de PPPs para
a criação de três grandes complexos, com 3.500 vagas cada um,
totalizando 10.500 vagas em território paulista.
Por enquanto, cinco empresas já se manifestaram apresentando interesse
no negócio. Segundo o vice-governador Guilherme Afif Domingos, até o
meio de 2012, o governo deve definir o modelo e a viabilidade da
Parceria. Segundo ele, uma das vantagens seria o fato de que o
empregador forneceria a área, o que contornaria um problema do governo.[7]
O modelo, ainda indefinido, deve incluir a oferta do terreno pela
iniciativa privada, a construção dos presídios e a administração de
atividades prisionais, a não ser aquelas típicas do Estado. Ao governo
caberá a direção geral e a transferência de presos, entre outros.
A concessão seria por 35 (trinta e cinco) anos, tempo máximo de um contrato de PPP no país, segundo a Lei 11.079/2004.[8]
A remuneração aos empreendedores privados seguiria o correto modelo de
Minas Gerais, baseada em indicadores de produtividade, como taxas de
fuga, respeito aos direitos humanos, assessoria jurídica, médica,
psicológica e etc..
A Bahia e o Ceará também aderiram ao sistema de Parceria
Público-Privada na administração prisional. Na Bahia já são cinco os
presídios geridos de forma híbrida. Já no Ceará, o presídio da cidade de
Cariri também já está em pleno funcionamento.
Muito embora o sistema compartilhado de gerenciamento entre a atividade
estatal e a empresa privada receba críticas da doutrina,[9] pensamos não ser inconstitucional sua existência.
O artigo 24 da Constituição Federativa do Brasil, em seu inciso I,
estabelece que a competência para legislar sobre direito penitenciário é
concorrente. Assim, é perfeitamente possível que as Assembleias
Legislativas dos estados editem normas referentes à utilização das
Parcerias, inclusive no âmbito prisional.
Ora, se o próprio constituinte não excepcionou a regra, não cabe ao
intérprete maiores digressões. O que a Constituição determina é que a
pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do apenado e a garantia à
integridade física e moral do preso.
Comungando com tal raciocínio, Luis Flávio Borges D’URSO, “... De minha
parte não me acomodo e continuo a defender essa experiência no Brasil,
até porque não admito que a situação atual se perpetue, gerando mais
criminalidade, sugando nossos preciosos recursos para piorar o homem
preso que retornará, para nos dar o troco.”[10]
Não há, portanto, inconstitucionalidade no preceito que estipulou as
parcerias Público-Privadas em alguns estados brasileiros.
Inconstitucional é – à toda evidência – o desrespeito aos direitos
humanos do indivíduo que já se encontra privado de bem jurídico dos mais
significativos.
A ex-secretária nacional de justiça, Elizabeth SUSSEKIND também
contribui com o debate, afirmando: “Um agente penitenciário corrupto, se
for público, no máximo é transferido. Se for privado, é demitido na
hora. Há quem diga que custam mais, mas isso só acontece porque oferecem
mais. Fui secretária e cansei de entregar alvará de soltura a quem
ficou preso por quatro anos e saiu da cadeia sem saber assinar o nome.
Eles colocavam a digital no alvará porque o estado foi incapaz de
alfabetizá-los.”[11]
Se a gestão compartilhada atender aos imperativos das garantias
constitucionais asseguradas a todos e aos presos em especial, não há
falar em inconstitucionalidade das Parcerias.
Por falar em prisão, o mais incrível é a aceitação – por parte do homem
– de perder a liberdade, de ver a liberdade mitigada pela existência da
prisão. Estar preso já é uma agrura das mais terríveis e invasiva. Se é
possível dar ao detento dignidade, por ser axiologicamente correta e
constitucionalmente garantida, não se pode evitar esforços para se
atingir tal fim.
Sigmund FREUD, em sua magistral obra “O Mal-Estar na Civilização”,
acentuou: “Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades
de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas
reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio princípio
do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais
modesto princípio da realidade.”[12]
Com efeito, a liberdade é ôntica: ela precede à existência do Estado, não é precedida por ele.
O homem determinou a existência de penas e sanções. O mínimo que pode fazer é torná-las a menos cruel possível.
3. Direitos Fundamentais e Prisão
O fundamental, a questão celular da possibilidade da gestão
compartilhada nas penitenciárias é verificar se atenderá aos comandos da
dignidade da pessoa humana.
Não temos com isso a intenção de olvidar os aspectos econômicos, que
são importantes, mas não decisivos quando o que se está em debate é a
mais drástica das intervenções do estado na vida de seus cidadãos, qual
seja, a prisão.
Em sua célebre obra “Direito Penal e Controle Social”, Francisco Muñoz
CONDE traça de forma expedita acerca do tema asseverando:[13]
... No entanto, o discurso girou em torno das penas e medidas privativas de liberdade, porque, uma vez retiradas do catálogo de sanções as penas corporais e a pena de morte, são estas as que mais preocupam já que incidem em um dos bens jurídicos mais importantes: a liberdade. Essa mesma importância qualitativa lhes dá, ao mesmo tempo, um importante caráter intimidatório que as converte, atualmente, em um instrumento mais eficaz, ou, pelo menos, assim nos parece, desde o ponto de vista preventivo geral ... [grifo nosso]
Levamos anos, décadas, séculos para nos divorciarmos dos amálgamas
positivistas e mergulharmos na experiência neoconstitucional. Nas
palavras de Luis Roberto BARROSO e Ana Paula de BARCELLOS[14]
“A experiência política e constitucional do Brasil, da independência
até 1988, é a melancólica história do desencontro de um país com sua
gente e com seu destino. Quase dois séculos de ilegitimidade renitente
do poder, de falta de efetividade das múltiplas Constituições e de uma
infindável sucessão de violações da legalidade constitucional. Um
acúmulo de gerações perdidas.”
A ilegitimidade ancestral se materializou na dominação de uma elite de
visão estreita, tacanha, patrimonialista, patriarcal, que jamais teve um
projeto de país para toda a gente. A nação surgiu sob a forma
estamentária e colonial, viciada em privilégios injustificáveis,
culminando com um déficit de saneamento básico, saúde, educacional e com
a potencialização de verdadeiros abismos sócio-econômicos.[15]
Com a Carta da República de 1988, que surge consagrando expressamente,
no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como
um dos fundamentos do nosso Estado democrático e social de Direito,
elencado no artigo 1º, inciso III,[16] o
constituinte de 88 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na
Alemanha -, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do
sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e
do próprio estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe
em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.[17]
Nas palavras de Jorge Reis NOVAIS, “no momento em que a dignidade é
guindada à condição de princípio constitucional estruturante e
fundamento do Estado Democrático de Direito, é o Estado que passa a
servir como instrumento para a garantia e promoção da dignidade das
pessoas individual e coletivamente consideradas.”[18]
Anote-se que o Estado de Direito não pode ser considerado apenas sob o
ponto de vista meramente formal, e sim na sua expressão material, local
onde se encontram reconhecidos valores e liberdades fundamentais. É
dentro de tal contexto que assume relevo a acertada concepção de que os
direitos fundamentais constituem critérios de legitimação da ordem
constitucional.
É dentro desse contexto que assume importância a lição de Luigi
FERRAJOLI, no sentido de que todos os direitos fundamentais equivalem a
vínculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas
produzidas no âmbito estatal, ao mesmo tempo em que expressam os fins
últimos que norteiam o moderno Estado Constitucional de Direito.[19]
É nesse passo, que os direitos fundamentais passam a ser considerados
instrumentos de defesa das liberdades individuais e, mais que isso,
elementos que assumem um viés de ordem jurídica objetiva, integrando um
sistema impregnado de valor, portanto axiológico, que atua como
fundamento material da totalidade do ordenamento jurídico.
Como resultado de seu conteúdo axiológico, tais direitos formam a própria substância do ordenamento jurídico-constitucional.
Deve-se ter sempre em mente, que o direito não é a simples formulação
de normas por parte dos representantes da sociedade e aplicada pelo
estado-juiz . Tal seria despiciendo e levaria à consagração do
positivismo jurídico. Se assim fosse, o que se poderia fazer contra a
lei injusta? O legislador também comete injustiças quando, por exemplo,
emite uma norma socialmente eficaz, que exija ou autorize medidas
atentatórias contra os direitos humanos. Tal norma deve ser fulminada.
Aliás - sustenta-se que toda a sociedade que não respeita o disposto no
artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão,
insculpida na Revolução Francesa de 1789 – não possui uma constituição.[20]
O direito é muito mais do que uma exegese meramente simplória, uma
visão reducionista. O direito é um ordenamento, que deve ser acolhido
para além da perspectiva meramente formal, que jamais poderia alcançar
seus mais nobres objetivos.
Portanto, a eficácia dos direitos fundamentais em sua plenitude só pode
ser atingida pela compreensão material do direito, observado do ponto
de vista etiológico, dando força para a atividade hermenêutica.
Em boa hora, estamos passando por uma mutação constitucional. Tal
transformação pode se operar por duas maneiras: Através de uma reforma
do texto, pelo exercício do poder constituinte derivado; ou através do
recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um
processo informal de reforma do texto constitucional. Consiste na
atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do
seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores
políticos e sociais que não estavam presentes quando da publicação da
constituição.[21]
A interpretação evolutiva se concretiza por intermédio de comandos
constitucionais que se utilizam de conceitos indeterminados, como o de
função social da propriedade, redução das desigualdades sociais, das
desigualdades étnicas e em garantias constitucionais evoluídas.
Muito embora nosso país possua uma constituição liberal, de forte apelo
social-democrata, evoluímos para a interpretação neoconstitucional,
enfatizando, no limiar deste século que se inicia, conteúdos
interpretativos da norma, deflagrando mais amiúde a atividade
hermenêutica.
Em termos mais fáceis: para o defensor da tese do positivismo legal,
nos casos lacunosos do direito, a decisão é determinada (se resolve) por
aspectos extrajurídicos.
Diferente é o posicionamento do jurista neoconstitucional. Por não
identificar o direito com a lei, - nos casos de dúvida, de lacuna -,
pode a decisão também ser determinada pelo direito, ou seja, por
critérios jusfilosóficos e metajurídicos.
Os direitos fundamentais cumprem tarefas necessárias à vida dos
cidadãos. São várias as suas funções. A primeira função dos direitos
fundamentais, sobretudo dos direitos, liberdades e garantias, é a defesa
da pessoa humana, aí incluindo sua dignidade em face dos poderes do
Estado.
Nesse sentido, José Joaquim Gomes CANOTILHO[22] leciona que:
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões de poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). [grifo nosso]
Robert ALEXY comungando com o pensamento de CANOTILHO anota que os
direitos de defesa (ações estatais negativas) podem ser divididos em
três grupos: “o primeiro grupo é composto por direitos a que o Estado
não impeça ou não dificulte determinadas ações do titular do direito; o
segundo grupo, de direitos a que o estado não afete determinadas
características ou situações do titular do direito; o terceiro grupo, de
direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do
titular do direito.”[23]
No momento em que se chega à consagração do neoconstitucionalismo, do
pós-positivismo e das garantias de direitos individuais e coletivos,
pensamos que as Parcerias Público-Privadas podem receber tonalidades
bastante significativas para a concretização dos direito fundamentais.
Hodiernamente o que se observa são prisões precárias, sem a menor
condição de higiene para os internos, inexistindo a possibilidade de uma
vida digna para quem está a passar pelas agruras do cárcere. É bom que
se tenha sempre em mente que o cidadão não precisa ser preso para ser
punido. A privação de liberdade já é, de per se, por demais aviltante. A
história da prisão é a história da violência e da repressão, da
ostentação dos suplícios e da punição generalizada.[24]
Portanto, o foco do pesquisador que se presta ao estudo do instituto
das Parcerias Público-Privadas no sistema prisional, deve ser a
dignidade da pessoa humana, sem dúvida, pilar do estado de direito.
Sem embargo daqueles que sustentam ser inconstitucional o modelo
híbrido, a conclusão a que se chega sobre a gestão iminentemente pública
é de que tal modelo beira o fracasso.
Com efeito, a maior preocupação que se deve ter no que tange ao sistema prisional, é o respeito aos direitos humanos.
Pensamos que a pessoa humana merece relevo angular em todas as relações
jurídicas, por ser necessário considerar o conceito de pessoa, de
sujeito de direito, como categoria da reflexão jurídica, necessária e
com valor universal, que não é fundada na experiência jurídica nem
limitada por ela.[25]
A pessoa – sujeito de direito - é um ser que um determinado direito
historicamente dado considera como um fim em si. Ao contrário, objeto de
direito é o que, na mesma situação, é utilizado como meio para se
atingir determinados fins.
4. Conclusão
A história da prisão é a história da violência e da barbárie.
Mais que isso, a prisão é um golpe que é desferido contra a
civilização, que, bestializada, assistiu ao incremento da pena desde
tempos remotos.
Antes, permitíamos a morte (até hoje permitimos) e as penas corporais. Permitíamos o degredo, as galés, o calabouço.
Com os anos a pena “sofisticou-se”. Surgiu a idéia da penitenciária.
E o Estado jamais deixou de tipificar crimes e cominar penas. Desde a
opinião pública até aos argumentos políticos eleitoreiros partidários, a
criminalização de condutas sempre foi utilizada como panaceia para os
males sociais e para seus excluídos.
Etiquetaram-se cidadãos. Puseram-lhes a pecha. Para o criminoso, a cadeia!
Com esse verdadeiro discurso punitivo, nada mais natural do que o
inchaço das prisões. As vagas são escassas; as condições, desumanas.
Os instrumentos de ressocialização – um dos pilares dos defensores até
daqueles que defendem a pena de prisão – não são eficazes. Não há
dinheiro, e o que é pior, não há vontade política no sentido de se
melhorar as condições prisionais.
Presídio não dá voto. Nunca deu. Ao contrário, pode tirar.
As vozes das ruas formam coro em face do delinquente.
O novel instituto das Parcerias Público-Privadas é uma tentativa de
melhoria concreta do sistema penitenciário, com a colocação da pessoa,
do homem, do cidadão no centro do debate. A visão que está a se defender
é antropocêntrica, não financeira.
As Parcerias entre os entes público e privado na gestão prisional,
atende ao imperativo dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa
humana em qualquer circunstância em que se encontre.
Não se está aqui a defender a gestão híbrida prisional como a única
solução para as agruras do sujeito encarcerado, nem do sistema
prisional, que precisa, e muito, de transformações estruturais.
Mas sem dúvida, os argumentos favoráveis à existência das Parcerias se revestem de notável relevo científico e humanista.
De fato, hoje nós temos verdadeiros depósitos humanos, universidade de
crime, desrespeito completo aos direitos humanos e barril de pólvora
todo dia próximo a explodir.
Penso que a possibilidade do sistema de Parceria Público-Privada na
gestão prisional deva ser enfrentada não do ponto de vista ideológico,
carregado de cores subjetivas, ou se o sujeito é contrário ou favorável.
A questão tem que ser enfrentada como uma necessidade quase que
insuperável. Ou se acolhe a gestão híbrida ou se aumenta o número de
presídios públicos, com a imensa desvantagem de – nesse caso, aumentar o
problema carcerário e social do país. Ou melhoramos as condições de
vida e readaptamos o preso à vida social sem a necessidade de um
investimento maior do estado ou vamos continuar a assistir lamentável
agressão contra os internos, que, via de consequência, é também agressão
ao próprio estado de direito.
O que se deve perquirir, prima facie, é a situação do indivíduo preso,
sua condição de amontoado em um sistema falido e ao mesmo tempo
condenado a piorar.
A criação das parcerias, nos moldes das que estão a surgir no Brasil,
entre o setor público e os investidores privados com expertise
necessária somam forças para melhorar de forma efetiva o sistema
prisional. Ainda que se tenha que discutir determinadas questões sobre a
viabilidade do incremento em larga escala de Parcerias no campo
penitenciário, sua implementação é um fato de imperiosa necessidade.
Há que se ter em mente, inclusive, a possibilidade da participação do
empresário internacional nas licitações em matéria prisional, em
conjunto com empresas brasileiras.
Concordamos com o projeto de Minas Gerais, em que se remunera o
parceiro privado em R$ 70,00 (setenta) reais por dia, ainda que se diga
que tal valor é superior ao que é gasto na tradicional gestão
exclusivamente pública.
Ocorre que mesmo nesse ponto, (o mais importante é, repita-se, o
direito do preso) as Parcerias podem e devem ser vantajosas, porquanto o
parceiro privado será remunerado de acordo com índices de gestão, e não
com a máquina burocrática do estado.
Esse é o valor máximo, o teto da remuneração diária. Como informado ao longo deste artigo, a remuneração estará vinculada
ao número de rebeliões, de óbitos, de fugas, ao nível educacional dos
internos, ao labor prisional, à qualidade dos serviços de saúde
prestados e à qualidade da assistência jurídica prestadas ao cidadão
preso, com indicadores de gestão.
A já citada abordagem feita pelo advogado Luis Flavio Borges D’Urso
também é de merecer acolhida, uma vez que o cerne da questão leva em
conta a pessoa humana, que se vê ofendida em sua dignidade.
A caótica situação prisional do país tem ensejado situações inusitadas,
porém justas. Em uma delas, o juiz da Vara de Execuções Penais de
Bacabal, estado do Maranhão, determinou, no dia 08/04/09, o recolhimento
domiciliar de cinco presos. O motivo foi a superlotação do presídio
local. Numa cela de 16 metros quadrados, que, por força legal só pode
receber três presos, encontravam-se dezesseis presos. Das 150 cadeias do
Estado, 60 estão interditadas. “Aqui em Bacabal, no Estado e no país, o
que nós temos são masmorras. E é uma situação intolerável. Precisa ser
modificada”, disse o juiz ao fundamentar a saída dos presos.[26]
Tal decisão encontra arrimo no ordenamento jurídico, estando de acordo
com a Constituição Federal de 1988 e os primados dos direitos humanos. A
lacuna aberta pelo Poder Judiciário faz com que o magistrado humanista e
neoconstitucional tenha tomado a corajosa decisão.
Diante desta assombrosa realidade, da escassez de recursos públicos
disponíveis e de know-how adequado, é que surgem unidades prisionais
inseridas no modelo de Parcerias Público-Privadas.
Assim, torna-se mais provável que o indivíduo retorne ao convívio social logrando atingir direitos inerentes à sua cidadania.
O Estado não se ausentará de suas responsabilidades: a ele caberá papel
de significância indelegável. O que se terá é a participação mais ativa
de segmentos empresariais em uma atividade que ainda engatinha, mas que
pode ser determinante para a concretização dos direitos fundamentais
inerentes à condição humana.
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
Notas
[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 118.
[2] MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário, (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. p. 191.
[3] ASSIS, Rafael Damasceno de. Privatização de prisões e adoção de um modelo de gestão privatizada. Disponível em: Acesso em: 18 jun. 2012.
[4] RÍMULO, Alexandre. A pena restritiva de liberdade à luz dos sistemas penitenciários. Disponível em: Acesso em: 18 jun. 2012.
[5] SANTOS, Antônio Carlos dos. As Parcerias Públicas Privadas e o Sistema Prisional Brasileiro. In: Âmbito de Aplicação das Parcerias Públicas - Privadas no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 124.
[6] “a qualidade dos serviços a serem prestados
pelo Consórcio GPA será garantida por mecanismos como o sistema de
indicadores de desempenho que define metas e níveis de serviços
rigorosos, acima do que é praticado por qualquer estado do Brasil,
consolidando Minas Gerais como referência nacional da gestão-prisional.”
extraído do sítio da Secretaria de Defesa de Minas Gerais.
[7] Superlotação de presídios. Disponível em: 22 mai. 2012. Acesso em: 10 jun. 2012.
[8] “Art. 5. Inciso I – o prazo de vigência do
contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, não
inferior a 5 (cinco), nem superior a 35 (trinta e cinco) anos,
incluindo eventual prorrogação;”
[9] MINHOTO, Lauro Dias. Presídios com parcerias público-privadas são ilegais, dizem críticos. Disponível em: Acesso em: 16 mar. 2012.
[10] Privatização das Prisões, mais uma vez a polêmica. Disponível em: Acesso em: 11 jun. 2012.
[11] Privatizar Resolve?
Revista Época. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76972-6009,00-PRIVATIZAR+RESOLVE.html.
Acesso em: 11 jun. 2012.
[12] FREUD, Sigmund. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. V. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 85.
[13] CONDE, Francisco Muñoz. Direito Penal e Controle Social. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 73.
[14] BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana
Paula de. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o
Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. In: BARROSO, Luis Roberto.
(Orgs.). A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 327-328.
[15] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. formação do patronato político brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2001. p. 107.
[16] [16] “Art. 1º A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da
pessoa humana;”
[17] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 75.
[18] NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2005. p. 52.
[19] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999. p. 22. (tradução livre)
[20] PAVIA, Marie-Luce. La dignite de la persona humaine. 4. ed. Dalloz: Paris, 1997. p. 105.
[21] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 376.
[22] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p. 408.
[23] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 196.
[24] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 16. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. p. 152.
[25] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 190.
[26] GOMES, Luiz Flávio. juiz do Maranhão solta presos de cadeia lotada. Disponível em: Acesso em: 29 abr. 2012.
Abstract: This article discusses the possibility of
the implementation of Public-Private Partnerships in the Brazilian
prison management. For a variety of factors, the prison system failed
and could not reach the dictates of fundamental rights of incarcerated
citizens. Within this perspective, there is the possibility of private
participation in management of prisons in an attempt to alleviate the
serious problem of overcrowding in prisons.
Keywords:Fundamental Rights. Public-Private Partnerships. Prison Management. Human Rights
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