Dráuzio Varella, em sua recente crônica “Depois de vinte anos”
afirmou que o massacre do Carandiru, que ceifou pelo menos 111 vidas há
vinte anos, “foi uma carnificina absolutamente gratuita, que
enfraqueceu o poder do Estado e abriu espaço para que o crime se
organizasse em facções decididas a impor suas leis nas prisões e fora
delas”. O levante, iniciado durante um jogo de futebol, estendeu-se até
um pavilhão de novatos; não havia reféns. Bastaria cortar água comida e
luz e aguardar a rendição. No entanto, foi acionada a Polícia Militar.
“A partir daquele momento, o diretor foi substituído por seus superiores
hierárquicos, que centralizaram as decisões”. O diretor civil, de nome
Pedrosa, pediu oportunidade para negociar, o que lhe foi negado. Tentou
fazê-lo à revelia, não houve tempo. "Mal cheguei, escancararam o
portão. Fiquei prensado contra a parede, enquanto os soldados invadiam".
Deu no que deu.
O massacre do Carandiru, que completa vinte anos sem culpados, é o exemplo mais funesto do que chamamos de militarização do sistema carcerário – e é lamentável ver que as lições não foram aprendidas, pois esta política perigosa está em pleno curso no Estado da Paraíba.
Recentemente, o Governo do Estado, defendendo-se de críticas da nossa ouvidora de Segurança Pública, negou a militarização, alegando que somente dois presídios teriam diretores oriundos do quadro militar e que a Polícia Militar faria apenas o policiamento externo dos estabelecimentos.
Ora, isso é absolutamente insuficiente para desmentir a flagrante militarização do sistema penitenciário paraibano. Também o Carandiru não tinha controle militar explícito – havia um diretor civil, como vimos, o que não evitou que a polícia entrasse com ordens de “dominar a rebelião a qualquer preço”. E é essa lógica de guerra, de “fazer o que for preciso” para manter a “ordem” no sistema carcerário, é que hoje impera no sistema penitenciário paraibano. O Governo – como, aliás, qualquer governo – não quer gastar recursos em prisões; a ordem, assim, é punir exemplarmente em casos de quebra-quebra, rotineiros nas prisões brasileiras.
A militarização significa a predominância de uma lógica do inimigo, totalmente incompatível com princípios constitucionais como a garantia da dignidade humana, o devido processo legal ou individualização da pena. Vejamos suas características.
A lógica do confronto - Os apenados são vistos como inimigos, sempre a postos para o ataque. As prisões, como território a ser conquistado a qualquer custo. Tornam-se assim, espaços de guerra, não de ressocialização. Qualquer rebelião implica em invasão pela polícia, com ordens de fazer, como no Carandiru, “o que for preciso” para preservar a ordem.
A lógica da tolerância zero – Inimigo não tem direitos. Seu único direito é estar preso, e não morto. Qualquer rebelião merece assim repressão máxima. Por isso foram mantidos nus, aglomerados, durante quatro dias, em um quarto imundo, com apenas uma só latrina, presos do PB1, não porque estivessem arquitetando planos de fuga – como tentaram justificar as autoridades – mas porque tiveram a “ousadia” de se rebelar. Nesse sentido, pode-se dizer que novos Carandirus estão sendo gestados na Paraíba – além do “Carandiru à prestação” que, em curto período de tempo, abre mais vagas no superlotado sistema estadual do que faria um evento do porte do ocorrido em 1992.
A lógica da supressão de direitos - Nem sequer se cogita em dar cumprimento ao Plano Diretor do Sistema Carcerário do Estado, que prevê diversas medidas para ajustar as condições carcerárias ao exigido na Lei de Execuções Penais, assim como medidas de ressocialização, como trabalho, educação etc. Este plano é condição para o recebimento de recursos federais. Por esta razão o Ministério Público Federal, diante da reiterada omissão do Estado, que não se limita somente a descumprir o plano, mas também ignora a prestação de contas, recomendou a suspensão dos repasses dos convênios e repasses com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) até que o Estado da Paraíba se comprometa a um cronograma de cumprimento.
A lógica do controle – O militarismo vê o ambiente prisional e mesmo a sociedade sob a lógica da hierarquia. Prestação de contas, controle social são, quando muito, o discurso vazio para ocasiões solenes. A prática é de repressão, que não se limita aos detentos, mas estende-se também contra qualquer entidade pública ou privada que pretenda fazer inspeções independentes nos estabelecimentos carcerários. Esta lógica foi determinante na prisão dos conselheiros do Conselho Estadual de Direitos Humanos que apuravam denúncia de maus tratos no presídio estadual conhecido como PB1, em 28 de agosto deste ano. A divulgação de relatórios de visita pela internet, sem o consentimento prévio das autoridades, é vista como gravíssima infração, que torna os responsáveis inimigos do poder militar. Por isso é tolerada apenas a visita “programada”, “oficial”, isto é a visita engravatada, escoltada e autorizada com antecedência nas unidades prisionais. Isto é, aquela visita inútil, que, quando muito, verifica condições materiais, nunca violações de direitos humanos como a tortura.
A lógica da guerra psicológica – Desqualificar os críticos e as entidades de direitos humanos torna-se uma estratégia para o militarismo, que busca, em seu benefício, reforçar os preconceitos existentes na sociedade quanto ao sistema prisional. Para isso conta com a associação existente entre segmentos policiais e emissoras de televisão que veiculam programas de sensacionalismo policial, abusando de menores e outros detidos, que são submetidos a entrevistas vexatórias e humilhações nestes programas.
Longe de representar uma garantia de proteção à sociedade, o militarismo na verdade aguça as tensões, com os presos e também com o pessoal civil dos presídios, alijados de qualquer poder decisório.
Conflitos internos no sistema penitenciário paraibano levaram a duas rebeliões, inclusive em estabelecimento que há muito não tinha este tipo de problemas, em apenas uma semana. Uma fuga inexplicável de oito detentos, na mesma semana, mostra, mais uma vez, que, longe de representar garantia para a sociedade, em sua maioria surda aos apelos das prisões, a política de militarismo representa um problema a mais.
É preciso que os nossos governantes, se não os movem quaisquer outras considerações de caráter humanitário, legal ou constitucional, atentem para os maus resultados, mesmo em curto prazo, dessa política e mudem de orientação – antes que seja tarde demais.
O massacre do Carandiru, que completa vinte anos sem culpados, é o exemplo mais funesto do que chamamos de militarização do sistema carcerário – e é lamentável ver que as lições não foram aprendidas, pois esta política perigosa está em pleno curso no Estado da Paraíba.
Recentemente, o Governo do Estado, defendendo-se de críticas da nossa ouvidora de Segurança Pública, negou a militarização, alegando que somente dois presídios teriam diretores oriundos do quadro militar e que a Polícia Militar faria apenas o policiamento externo dos estabelecimentos.
Ora, isso é absolutamente insuficiente para desmentir a flagrante militarização do sistema penitenciário paraibano. Também o Carandiru não tinha controle militar explícito – havia um diretor civil, como vimos, o que não evitou que a polícia entrasse com ordens de “dominar a rebelião a qualquer preço”. E é essa lógica de guerra, de “fazer o que for preciso” para manter a “ordem” no sistema carcerário, é que hoje impera no sistema penitenciário paraibano. O Governo – como, aliás, qualquer governo – não quer gastar recursos em prisões; a ordem, assim, é punir exemplarmente em casos de quebra-quebra, rotineiros nas prisões brasileiras.
A militarização significa a predominância de uma lógica do inimigo, totalmente incompatível com princípios constitucionais como a garantia da dignidade humana, o devido processo legal ou individualização da pena. Vejamos suas características.
A lógica do confronto - Os apenados são vistos como inimigos, sempre a postos para o ataque. As prisões, como território a ser conquistado a qualquer custo. Tornam-se assim, espaços de guerra, não de ressocialização. Qualquer rebelião implica em invasão pela polícia, com ordens de fazer, como no Carandiru, “o que for preciso” para preservar a ordem.
A lógica da tolerância zero – Inimigo não tem direitos. Seu único direito é estar preso, e não morto. Qualquer rebelião merece assim repressão máxima. Por isso foram mantidos nus, aglomerados, durante quatro dias, em um quarto imundo, com apenas uma só latrina, presos do PB1, não porque estivessem arquitetando planos de fuga – como tentaram justificar as autoridades – mas porque tiveram a “ousadia” de se rebelar. Nesse sentido, pode-se dizer que novos Carandirus estão sendo gestados na Paraíba – além do “Carandiru à prestação” que, em curto período de tempo, abre mais vagas no superlotado sistema estadual do que faria um evento do porte do ocorrido em 1992.
A lógica da supressão de direitos - Nem sequer se cogita em dar cumprimento ao Plano Diretor do Sistema Carcerário do Estado, que prevê diversas medidas para ajustar as condições carcerárias ao exigido na Lei de Execuções Penais, assim como medidas de ressocialização, como trabalho, educação etc. Este plano é condição para o recebimento de recursos federais. Por esta razão o Ministério Público Federal, diante da reiterada omissão do Estado, que não se limita somente a descumprir o plano, mas também ignora a prestação de contas, recomendou a suspensão dos repasses dos convênios e repasses com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) até que o Estado da Paraíba se comprometa a um cronograma de cumprimento.
A lógica do controle – O militarismo vê o ambiente prisional e mesmo a sociedade sob a lógica da hierarquia. Prestação de contas, controle social são, quando muito, o discurso vazio para ocasiões solenes. A prática é de repressão, que não se limita aos detentos, mas estende-se também contra qualquer entidade pública ou privada que pretenda fazer inspeções independentes nos estabelecimentos carcerários. Esta lógica foi determinante na prisão dos conselheiros do Conselho Estadual de Direitos Humanos que apuravam denúncia de maus tratos no presídio estadual conhecido como PB1, em 28 de agosto deste ano. A divulgação de relatórios de visita pela internet, sem o consentimento prévio das autoridades, é vista como gravíssima infração, que torna os responsáveis inimigos do poder militar. Por isso é tolerada apenas a visita “programada”, “oficial”, isto é a visita engravatada, escoltada e autorizada com antecedência nas unidades prisionais. Isto é, aquela visita inútil, que, quando muito, verifica condições materiais, nunca violações de direitos humanos como a tortura.
A lógica da guerra psicológica – Desqualificar os críticos e as entidades de direitos humanos torna-se uma estratégia para o militarismo, que busca, em seu benefício, reforçar os preconceitos existentes na sociedade quanto ao sistema prisional. Para isso conta com a associação existente entre segmentos policiais e emissoras de televisão que veiculam programas de sensacionalismo policial, abusando de menores e outros detidos, que são submetidos a entrevistas vexatórias e humilhações nestes programas.
Longe de representar uma garantia de proteção à sociedade, o militarismo na verdade aguça as tensões, com os presos e também com o pessoal civil dos presídios, alijados de qualquer poder decisório.
Conflitos internos no sistema penitenciário paraibano levaram a duas rebeliões, inclusive em estabelecimento que há muito não tinha este tipo de problemas, em apenas uma semana. Uma fuga inexplicável de oito detentos, na mesma semana, mostra, mais uma vez, que, longe de representar garantia para a sociedade, em sua maioria surda aos apelos das prisões, a política de militarismo representa um problema a mais.
É preciso que os nossos governantes, se não os movem quaisquer outras considerações de caráter humanitário, legal ou constitucional, atentem para os maus resultados, mesmo em curto prazo, dessa política e mudem de orientação – antes que seja tarde demais.
Fonte: http://www.prpb.mpf.gov.br/artigos/artigos-procuradores/a-militarizacao-do-sistema-penitenciario-paraibano
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