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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Por meio da ressocialização, detentos resgatam a autoestima e descobrem a cidadania
Brasília (DF) - A cena a seguir se passa nos Estados Unidos, mas poderia ser no Brasil. “Meritíssimo, pode-se manter uma pessoa trancafiada tempo demais, assim como se pode manter alguém preso o tempo certo. Tenho problemas, e se me deixarem mais tempo preso, eles vão aumentar”, disse Gary Gilmore, 32 anos, à Corte de Justiça de Portland, em 1972.
Pela reincidência no crime de assalto à mão armada, ficara mais quatro anos trancafiado. Posto em liberdade condicional, assassinou duas pessoas inocentes num intervalo de 48 horas. Condenado à morte, Gilmore foi executado por um pelotão de fuzilamento na Penitenciária Estadual de Utah, no ano de 1977.
Essa história real, relatada no livro “A canção do carrasco”, de Norman Mailer, retrata não só a discussão por que passava o sistema de justiça criminal norte-americano, mas também o debate público sobre a função de uma penitenciária. À época, entendia-se que a recuperação de presos não se resumia simplesmente a mantê-los afastados do convívio social.
O protagonista do livro já havia dito que aquele modelo prisional não conseguira recuperá-lo. Pelo contrário, o tornara uma pessoa pior. Hoje, é unânime a ideia de que a ressocialização de presos seja definitivamente incorporada às políticas nacionais de segurança pública.
No Brasil, programas de reinserção social têm sido adotados como parte das medidas alternativas de cumprimento de pena. Com o objetivo de diminuir a reincidência de presos que acabaram de sair da cadeia, esses programas têm por prioridade atingir um público-alvo composto por jovens.
Dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária (InfoPen) mostram que dos cerca de 8,5 mil detentos no sistema prisional do Distrito Federal, 34%, ou 2,9 mil, são jovens com idade entre 18 e 24 anos. Esse índice é superior ao da média nacional: de um total de 498 mil presos, 26% são jovens nessa faixa etária.
De acordo com o chefe da Seção de Projetos de Responsabilidade Social do Supremo Tribunal Federal (STF), Daniel Teles da Silva, não há registro de casos de reincidência entre os 40 egressos que, atualmente, trabalham no Supremo. Exemplo de eficiência na reintegração de apenados, a iniciativa do STF, firmada em convênio com o Governo do Distrito Federal, inspirou o programa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o “Começar de Novo”.
O programa encaminha presos do regime semiaberto e aberto – prisão domiciliar – para trabalhar em instituições como o Comitê Organizador da Copa de 2014, a Federação Brasileira de Bancos, e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Dos erros redimidos
“Dentro da cadeia dei aulas de ensino religioso, filosofia, história e alfabetização. Isso foi gratificante pra mim. Eu estava pagando por uma coisa errada que fiz, mas tirei algo de positivo disso”, reconhece Antônio*, 43 anos, que cumpriu 18 meses na Penitenciária da Papuda por tráfico de drogas. Hoje ele trabalha no STF ao mesmo tempo em que cumpre o restante da pena em prisão domiciliar. Pela remição, cada três dias trabalhados no Tribunal diminuem um dia na pena. (*nome fictício para preservar a identidade da entrevistado)
O ex-detento e atual poeta e escritor lembra que um dos principais benefícios dos programas de ressocialização é o resgate da autoestima de quem está preso. “Quando o camarada entra para a prisão, ele chega lá totalmente deprimido e com as piores ideias possíveis”, diz. Antônio entende que “não tem como você projetar nada na sua vida, se você não tiver a sua liberdade. Isso é fundamental na vida de alguém, tanto para crescimento material, intelectual quanto espiritual”.
Egressa e atual estagiária do Ministério da Justiça, Mariane*, 24 anos, revela que o aumento do número de mulheres nas prisões tem relação com os chamados “crimes do amor”. Com conhecimento de causa, ela afirma que “90% das meninas estão presas por causa dos maridos ou namorados. Mas eles jamais vão presos por causa da gente”, observa. (*nome fictício para preservar a identidade da entrevistada)
A condenação por tráfico de drogas e associação para o tráfico lhe custou três anos na Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Hoje, Mariane trabalha no Palácio da Justiça, na Esplanada dos Ministérios. À noite, retorna ao presídio no Gama, para cumprir parte do regime semiaberto.
A chance veio com O Papel da Liberdade, programa de reinserção do Ministério da Justiça em convênio com a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap-DF). Dentro dessa iniciativa, Mariane fez cursos de secretariado, auxiliar administrativo e informática enquanto cumpria o regime fechado. Depois de passar pela experiência do encarceramento, diz ter compreendido a importância de detalhes que antes não percebia. “A gente aprende a dar valor nas mínimas coisas, no nascer e no pôr do sol, na chuva”, comenta.
A reintegração de presos e presas abrange atividades de trabalho dentro e fora das penitenciárias. As atividades vão desde a alfabetização até a inclusão digital e formação profissional. Em Brasília, apenas 17 detentos têm aulas de artesanato. Por outro lado, até mesmo a capacitação dos agentes prisionais pode ser considerada parte da ressocialização. O treinamento contínuo contribui para a melhoria da relação entre agentes e apenados.
No sistema prisional brasiliense, 1.782 presos participam de programas de laborterapia, dos quais 1.595 homens e 187 mulheres. Do total, 295 trabalham fora da prisão por meio de parceria com a iniciativa privada; os convênios com órgãos do Estado empregam outros 321 no trabalho externo. Já o trabalho realizado dentro dos presídios ocupa 1166 pessoas que cumprem pena em regime fechado. Os dados do InfoPen são referentes a junho de 2010.
Da escolha pelo bem
“Durante dez anos da minha vida eu fui traficante. Eu fiz tudo o que você imaginar de errado. Só que agora, eu quero poder viver honestamente. Quero provar que eu sou capaz”, disse Alessandra* a João Carlos*, seu atual patrão. Por ele ter comprado o estabelecimento comercial onde a cozinheira de 23 anos já trabalhava, ela temia perder a oportunidade de construir outra vida longe do tráfico. Na opinião do empreendedor João Carlos, “a atitude dela falou mais alto do que a ficha criminal”. (*nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados)
Tudo começou quando a ex-detenta recebeu o benefício do regime semiaberto e foi trabalhar com reciclagem. “Quando comecei a trabalhar com o Papel da Liberdade, no semiaberto, não era porque eu queria tra-ba-lhar”, enfatiza a cozinheira. “Meu negócio era sair para poder passar o tempo e ficar livre daquilo ali [da prisão]”.
No entanto, a mudança de consciência não aconteceu da noite para o dia. Alessandra se recorda de que, mesmo depois de presa, ainda pensava em sair da cadeia para voltar a ganhar dinheiro com o tráfico. “Vou fazer as coisas direito porque agora eu sei como funciona”, acreditava.
“Mas eu mudei o pensamento mesmo foi o dia que o meu filho entrou pelo portão do presídio né, doente, com febre, magro, mal vestido e mal arrumado. Aí eu olhei ele assim, peguei ele no colo, dei remédio... Mas, duas horas depois vi que ele foi embora e eu não pude cuidar dele mais. Daí, decidi que, por amor ao meu filho, eu iria mudar a minha vida”, diz. Hoje, Alessandra é responsável por toda a produção de uma cozinha industrial na Asa Sul. “Toda pessoa deve ter uma segunda chance para poder se corrigir”, considera João Carlos.
Da Justiça nas prisões
Conforme levantamento do CNJ, as forças-tarefa das Defensorias Públicas confirmaram o alto índice de reincidência por parte de egressos do sistema prisional. Os 52 mutirões carcerários feitos no Brasil nos últimos dois anos evidenciam que entre 60% e 70% dos presos voltam a cometer crimes ou delitos após cumprirem pena.
Por sua complexidade, o enfrentamento ao problema de superlotação remete ao processo de modernização da Justiça brasileira. Um dos maiores desafios é o de se expandir a assistência jurídica a todos os presos, sejam eles provisórios ou condenados.
“Para evitar que essas pessoas fiquem presas mais tempo do que deveriam, o poder público tem articulado ações como a Força Nacional da Defensoria Pública em Execução Penal”, afirma o secretário de Assuntos Legislativos, Marivaldo Pereira. Ele avalia que “modernizar a execução penal junto às Defensorias Públicas, Poder Judiciário e Ministério Público, é assegurar aos presos direitos como a revisão de pena, a liberdade condicional e a progressão de regime”.
A mobilização da Justiça brasiliense, em julho do ano passado, identificou que cerca de 25% dos detentos do sistema prisional do DF estavam presos ilegalmente. A partir da análise de 8126 processos, 300 presos foram libertados e outros 1734 receberam benefícios como a progressão de regime. Por exemplo, do regime fechado para o semiaberto.
A iniciativa realizada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), sob coordenação do CNJ, envolveu a Defensoria Pública do Distrito Federal, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, a Secretaria de Segurança Pública do GDF e o Núcleo de Práticas Jurídicas do Uniceub.
De acordo com o juiz da Vara de Execuções Penas do TJDFT, Luis Martius Holanda Bezerra Júnior, o mutirão é uma importante ferramenta para que a Justiça conheça a realidade do sistema prisional, e, a partir disso, busque sanar os pontos negativos.
“Mutirão existe fundamentalmente para evitar ilegalidades, para apreciar a possibilidade de benefícios, não é simplesmente para dar benefícios para ninguém. Para evitar que pessoas fiquem esquecidas e sem o controle da Justiça dentro de uma delegacia, ou dentro de uma carceragem que não recebe uma fiscalização rotineira”, ressalta.
De volta às aulas
Essas ações apontam para outro aspecto da reinserção social: a importância de atividades relacionadas à educação. Essa proposta foi adotada pelo O Papel da Liberdade, cujas novas instalações, no Setor de Indústrias Gráficas, poderão atender até 100 presos do regime aberto e semiaberto. Eles terão acesso a salas de aula, laboratórios de informática, biblioteca, e oficina de reciclagem.
Dentre os atuais 49 beneficiados, 16 trabalham no Ministério da Justiça. Por meio de acordo de cooperação firmado em 2010, o CNJ, o TJDFT, a Secretaria de Segurança Pública-DF e a Defensoria Pública do Distrito Federal passaram a fazer parte da iniciativa que, nos últimos 14 anos, já beneficiou cerca de 300 pessoas.
Experiências desse tipo requerem tempo de amadurecimento, mas os programas de reinserção social demonstram que os resultados são mais eficazes no combate à criminalidade. Muitas pessoas que entram no crime, em grande parte as mais jovens, podem ser recuperadas antes de se tornarem definitivamente criminosos irremediáveis.
Gary Gilmore fora condenado pela primeira vez por assalto. Sem uma recuperação adequada, foi libertado e retornou à prisão com dois homicídios nas costas. Após a execução da pena de morte, o advogado dele, Robert Moody, disse acreditar que aquele episódio levasse a “um bom exame de nós mesmos, nossa sociedade e nosso sistema”.
Com informações do Ministério da Justiça (MJ).